
Reflexões de Paulo Vasconcelos
Jacobina, Procurador Regional da República
Paulo
Vasconcelos Jacobina*
A
doutrina mais moderna, no âmbito da ciência do direito penal, considera que uma
importante característica do direito penal, nas sociedades contemporâneas, é o
chamado “caráter subsidiário do direito penal”; é certo que esta doutrina ainda
é bastante debatida, e está longe de ser cristalizada, mas certamente
consubstancia uma discussão científica fundamental no âmbito jurídico do
penalismo contemporâneo. Ela ensina sobre a relação entre a lei penal e os
valores de uma sociedade. Ou seja, o direito penal só deve transformar em crime
as condutas que ofendam os valores mais essenciais, mais elevados, de uma
sociedade, deixando a outras instâncias a proteção de valores menos
importantes.
Diz
um Manual de Direito Penal em uso corrente em nossas universidades: “É que o
direito penal seleciona e tipifica condutas atendendo à relevância do
bem jurídico, e segundo a intensidade da lesão de que se trate, outorgando-lhes
uma proteção relativa. Portanto, não se protegem todos os bens jurídicos, mas
só os mais importantes, nem sequer os protege em face de qualquer classe
de atentados, mas tão só em face dos ataques mais intoleráveis.”
(Queiroz, Paulo. Direito Penal, parte geral. 4ª Edição revista e ampliada. Rio
de Janeiro, Lumen Juris, 2008. Pág. 33, grifo nosso).
Não
seria injusto dizer, portanto, que, no âmbito da ciência penal jurídica, para
descobrir quais são os valores mais importantes de uma determinada
sociedade num determinado momento histórico, bem como quais são as condutas
contra tais valores que tal sociedade considera intoleráveis, devemos
simplesmente examinar o direito penal desta mesma sociedade.
Falamos
concretamente do projeto de código penal ora em tramitação no Congresso
Nacional. Este projeto, em curtas linhas, torna lícito o aborto sob o simples pretexto
da “imaturidade psicológica” da genitora, ou torna justificável a eutanásia sob
o pretexto da “compaixão” ou da “misericórdia”, torna a homossexualidade uma
causa de sobrevalorização da vida em caso de homicídio e libera amplamente o
consumo de drogas psicotrópicas causadores de dependência. Trata-se, agora, de
fazer uma leitura deste projeto à luz do princípio da “subsidiariedade do
direito penal”, para ver qual sociedade ele quer espelhar, quais valores
sociais ele considera como extremamente preciosos e quais condutas ele
considera intoleráveis numa sociedade em que ele fosse o direito vigente.
Assim,
poderíamos razoavelmente afirmar que uma sociedade que tem uma legislação penal
assim não considera que a vida humana seja um dos seus “bens jurídicos mais
importantes”, nem que os atentados a ela em nome do “conforto
psicológico” dos genitores do nascituro, ou da “compaixão” ou “misericórdia”
dos herdeiros de um moribundo que resolvem apressar seu falecimento seja um “ataque
intolerável”, ao contrário. Estas, na verdade, seriam condutas socialmente
esperadas, socialmente valorizadas, caso tal projeto seja aprovado. Tampouco
pode-se considerar a higidez mental e a capacidade de levar uma vida
produtiva e colaboradora como um valor mais relevante, em tal
sociedade, do que o uso indiscriminado e hedonista de drogas psicotrópicas e
incapacitadoras.
A
primeira impressão é a de que uma certa “liberdade individual”, com uma dose de
libertarianismo anárquico, são considerados tão ou mais valiosos que a vida, a
convivência ou a saúde mental.
Há
uma meditação sobre a essência deste “individualismo” feita pelo filósofo
francês Alain Renaut, que se aplica perfeitamente à visão de homem que está
sendo trazida por este projeto. Para este autor, um individualismo assim
ferrenho seria considerado, na filosofia grega clássica, como um verdadeiro
“direito de escravos”.
Diz
Renaut: “Na medida em que o cosmo é, por si só, uma ordem, a liberdade do homem
não está ligada à contingência, mas, ao contrário, lhe é oposta. Disso é
testemunha de forma particularmente surpreendente, a espantosa reflexão em que
Aristóteles compara o universo a uma casa, os homens livres representando os
astros, porque 'lhes é menos lícito agir ao acaso' e porque todas as
suas ações – ou pelo menos sua maioria – são regradas; e, ao contrário, 'os
escravos e os animais', cujas ações raramente são ordenadas para o bem do
conjunto, sendo na maioria das vezes deixadas ao acaso, simbolizando as partes
inferiores – sublunares – do universo. (Metafísica de Aristóteles).
Assim,
conclui Renaut, 'são pois os escravos que são 'livres' no sentido
'moderno' da palavra, porque não sabem o que fazem, ao passo que a
liberdade do homem grego e sua perfeição são medidas de acordo com a determinação
maior ou menor de suas ações”. (Renaut, Alain. O Indivíduo. São Paulo,
Bertrand do Brasil, 1999).
Vale
dizer, a ação dos escravos, para os gregos antigos, poderia ser irracional,
contingente, autodestrutiva, imprevisível e indiferente, e os seus donos
poderiam deixá-los à mercê dos próprios impulsos. Mas os homens livres, não.
Cabe-lhes construir, conjuntamente, uma sociedade de iguais em dignidade, de
conviventes.
Esta
é, mutatis mutandis, a diferença entre o tratamento que damos, em nossas
casas, aos nossos bichos, por um lado, ou aos nossos filhos, por outro. Aos
bichos, castramos, acorrentamos, selecionamos parceiros, eliminamos proles
indesejáveis, esterilizamos e sacrificamos. Aos filhos, educamos e cuidamos,
protegendo-os mesmo de determinadas inclinações que, mesmo aparentemente
agradáveis, como a TV ou o videogame em excesso, não colaborarão, no entanto,
com o seu próprio crescimento pessoal.
Não
se constrói uma sociedade democraticamente viável estabelecendo uma axiologia
assim, em que a vida e a liberdade do povo é contingente com relação aos
impulsos de bem-estar dos indivíduos. Esta é a forma de cuidar de rebanhos, não
de democracias.
O
curioso é que a história viu inúmeras revoluções fundadas na intenção
iluminista, justíssima aliás, de estender aos cidadãos a dignidade antes
reservadas aos Reis e Nobres aristocratas. Ninguém jamais fez uma revolução sob
o pretexto de pleitear a redução da própria condição social à de um escravo. E
não se conhece, na história da humanidade, um só rei ou imperador que tenha
submetido a si ou à sua família à esterilização em massa, ao aborto dos
próprios descendentes, ao incentivo ao uso de estupefacientes pelos seus
príncipes e princesas ou à eliminação programada dos aristocratas idosos ou
moribundos. Eles sempre fizeram isso com os outros, o povinho deserdado dos
súditos, que era objeto de sua ação legislativa, e não sujeito do próprio
destino.
Trago
à lembrança a escravidão da qual a pena de ouro da Princesa Isabel nos livrou,
no final do século XIX. Imagino que se a Princesa Isabel vivesse hoje, e
resolvesse se compadecer dos nascituros como um dia se compadecera dos
afrodescendentes, certamente ouviria uma certa “vanguarda” dizer-lhe
agressivamente, com a melhor das consciências: “você é livre para não abortar
seus próprios filhos, se não quiser. Mas não pode se meter na 'liberdade' das
outras mulheres de abortá-los. Quem é você para pretender saber o que é melhor
para eles ou para mim?”. É melhor nem imaginar qual seria o resultado da
aplicação de uma axiologia assim nos idos de 1888.
*
Paulo Vasconcelos Jacobina é Procurador Regional da República e Mestre em
Direito Econômico
Fonte: Zenit
Fonte: Zenit
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