
Vivemos em uma época conturbada. Qualquer coisa afirmada levianamente ganha auréola de verdade.
O
deputado Jean Wyllys (PSol-RJ), por exemplo, se valeu de um trecho de
uma mensagem do Papa Bento XVI para uma série de afirmações bombásticas.
O Papa defendera a “estrutura natural do matrimônio” – a união entre um
homem e uma mulher – e disse que sua equiparação a outras formas
radicalmente diversas de união constituía uma “ofensa contra a verdade
da pessoa humana e uma ferida grave infligida à justiça e à paz”.
Parafraseando
o Papa, o deputado escreveu no Twitter que “ferida grave infligida à
justiça e à paz foi a escravidão de negros africanos apoiada pela Igreja
Católica”. Jean Wyllys não
está só. Essa é uma das acusações costumeiras que costumam ser feitas à
Igreja. Ela teria, segundo seus detratores, apoiado o sistema
escravocrata, especialmente o ocorrido na África entre os séculos 16 e
19. Mas a verdade é exatamente o contrário disso.
O
Cristianismo herdou do Antigo Testamento prescrições atenuantes no que
dizia respeito à escravidão. Com a ascensão social e política da Igreja
na Idade Média, a pressão a favor dos pobres, das mulheres e dos
escravos tornou-se maior. Por
exemplo, uma lei do século 6.º (sob influência da Igreja) afirmava que
nenhum escravo poderia ser preso caso estivesse em um altar católico.
Na Alta Idade Média (séculos 5.º ao 10.º), o catolicismo pressionou as
sociedades cristãs a considerarem a escravidão algo ultrajante aos seres
humanos, já que, pela fé em Jesus Cristo, todos são filhos de Deus.
Apesar
disso, a escravidão só lentamente diminuiu – para dar lugar, pouco a
pouco, à servidão, na qual a dignidade humana estava muito acima da
escravidão. O escravo era uma coisa que falava; já o servo tinha muitos
deveres, mas também direitos (como, por exemplo, a inalienabilidade da
terra). Mas, mesmo com a
pregação regular da Igreja, na Europa medieval a escravidão continuou
tão comum que teve de ser reiteradamente negada pela Igreja, como nos
concílios de Koblenz (922) e Londres (1022), e no Conselho de Armagh (na
Irlanda, em 1171).
O
antigo código civil romano, reorganizado nos anos 529-534 pelo
imperador bizantino Justiniano I, regulamentava a escravidão. Segundo
ele, embora o estado natural da humanidade fosse a liberdade, os
direitos dos povos poderiam, no entanto, substituir a lei natural e
escravizar pessoas. Mas, com a ascensão do Cristianismo, o Direito também se cristianizou. Os advogados medievais, a partir do século 11, chegaram à conclusão de que a escravidão era contrária ao espírito cristão.
Em
contrapartida, por exemplo, foi o Islã que difundiu largamente a
escravidão, como atesta Fernand Braudel. Muitos séculos antes da chegada
dos brancos europeus à África, tribos, reinos e impérios negros
africanos praticavam largamente o escravismo. Os escravos negros eram
trazidos aos europeus no século 16 pelos próprios africanos, que tinham
grandes mercados espalhados pelo interior do continente.
Entrementes, a Igreja Católica, reiteradamente, condenava a escravidão.
Há
inúmeras bulas papais a respeito: na Sicut Dudum (1435), Eugênio IV
mandou libertar os escravos das Ilhas Canárias; em 1462, Pio II instruiu
os bispos a pregarem contra o tratamento de escravos negros etíopes, e
condenou a escravidão como um tremendo crime; Paulo III, na bula
Sublimus Dei (1537), recordou aos cristãos que os índios são livres por
natureza (ao contrário dos negros, que praticavam a escravidão); em
1571, o dominicano Tomás de Mercado declarou desumana e ilícita a
escravidão; Gregório XIV (na Cum Sicuti, de 1591) e Urbano VIII (na
Commissum nobis, de 1639) condenaram a escravidão. Devemos estudar o
passado, não inventá-lo.
Ricardo da Costa, medievalista, é professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
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