A dificuldade de crescer na sociedade tecnológica
A cultura dita tecnológica se impõe hoje, não só
pela difusão de instrumentos sempre mais sofisticados, principalmente pela
possibilidade de planificar a existência de uma maneira impensável às gerações
precedentes[vii]. E isso, especialmente, em
nível de natalidade. Em tal campo, apareceram termos usados sempre mais
frequentemente, até surgir o slogan que resume uma concepção de vida:
“procriação responsável”, filhos “queridos e desejados”, ou mesmo
“programáveis”.
Parece assim ter-se realizado o sonho, desejado por
Freud no fim do século XIX, de poder separar a concepção da pulsão erótica: tal
separação não favoreceu, todavia, como esperava o fundador da psicanálise, o
“triunfo da humanidade”[viii]. Mais precisamente essa
levou a um empobrecimento psicológico e afetivo, nunca antes conhecido, uma
verdadeira “revolução antropológica”, para retomar o subtítulo de um livro de
Marcel Gauchet.
Desde o seu nascimento, o ser humano tem a ânsia de
que, no fundo, poderia não ter sido desejada e que deve, de qualquer modo,
“merecer” ter vindo ao mundo, correspondendo às fortes expectativas dos seus
pais. Como observa Gauchet: “Disso pode derivar a invencível fé na própria
sorte, ou, ao contrário, a sensação de irremediável precariedade da própria
existência. Em relação àquele desejo que o subtraiu ao destino comum, manterá
muitas vezes uma irredutível aflição [...]. Um filho é cada vez mais desejado
quanto menos é filho da natureza; mais é fruto de um artifício, qualquer que
este seja, menos é aquilo que deve ser: o filho de seus pais”[ix].
Outro aspecto paradoxal dessa desenvolvida
potencialidade planificadora é que a acurada seleção do nascituro corresponde
sempre menos àquela atenção afetiva e educativa indispensáveis para educá-lo,
tornando-o um adulto responsável. O filho se encontra, ao contrário, sufocado
pela atenção dos pais que, depois de o terem programado por tanto tempo, veem
nele a possibilidade de realizarem suas expectativas, muitas vezes até de
preencherem seus vazios e suas incompetências.
A criança corre o risco, assim, de ser bem cedo
tratada como um mini adulto, sobretudo se está sendo criada por um genitor
solteiro: nesse caso, forte será a tendência a depositar no filho esperanças e
expectativas que na verdade deveriam estar voltadas ao próprio companheiro,
dando origem àqueles perversos díades nas quais o filho ou a filha são chamados
a tornarem-se respectivamente “vice-marido” ou “vice-esposa” do próprio
genitor, impedindo-se de viver a etapa infantil e a própria filiação, duas
condições essenciais para a maturidade psíquica, cognitiva e afetiva[x].
A “síndrome do filho único”, vista em outras
ocasiões[xi], parece confirmar essa
inconsciente agitação, o desconforto de lidar com a polaridade desejo/rejeição
dos pais. Ele se torna assim esmagado pelas expectativas dos pais, da mesma
forma que um brinquedo é chamado a compensar as carências dos adultos.
Tudo isso contribui à incapacidade de um filho se
tornar adulto; incapaz, sobretudo, de saber o que verdadeiramente quer da própria
vida. Uma vez crescido, aquele menino ou aquela menina procurarão de fato
aquela infância perdida que jamais tiveram, recusando-se a crescer.
A Síndrome de Peter Pan
A rejeição ao crescimento é um fenômeno em
expansão, também desde o ponto de vista geracional, a tal ponto de ocupar a
vida inteira do homem. Essa situação de “bloqueio interior”, de impossibilidade
de se passar à fase adulta da vida, foi recentemente ratificada como categoria
psicológica, chamada de Síndrome de Peter Pan através da obra do
psicólogo junguiano Dan Kiley. Ele se inspira no célebre romance de James
Barrie Peter and Wendy, publicado em 1911, embora tenha conseguido maior
fama o título escolhido para a representação teatral, de 1904 (Peter Pan: o
menino que nunca quis crescer).
A escolha do personagem, protagonista do romance,
já é por si significativa. Peter era também o nome do irmão de James que morreu
aos catorze anos num acidente de patinagem; enquanto Pan, na mitologia grega,
era filho de Ermes e da filha de Driope, que o rejeitou, abandonando-o ao seu
destino[xii]. Como na mitologia e no
romance de Barrie, também na Síndrome de Peter Pan à base da condição instável
e errante desse personagem é principalmente a ausência de relações afetivas
importantes, em particular com os pais, vistos como frios e distantes, ou
incapazes de suscitar respeito[xiii].
Desse modo, quem sofre dessa síndrome busca a
própria infância perdida, comportando-se como se o tempo tivesse parado,
assumindo por toda a vida a instabilidade psíquica e afetiva própria da
adolescência, prisioneiro “no abismo entre o homem que não se quer tornar e o
garoto que não se pode continuar a ser”[xiv]. E se essa pessoa, no meio
tempo, também se casa, acaba por entrar em concorrência com os próprios filhos,
imitando-lhes os comportamentos e os modos de pensar. Como confessava uma jovem
desconsolada: “meu pai não faz outra coisa a não ser correr atrás das minhas
amigas e depois quer se confidenciar comigo”[xv].
Por sua vez, os filhos, colocados no mesmo nível
dos seus pais, tendem a comportarem-se como adultos: desse modo, nenhum dos
dois vive as responsabilidades e peculiaridades da própria etapa de vida; como
num jogo perverso, esses vêm trocados, invertendo perigosamente o significado
da derrota edípica: “Se olhamos atentamente ao conteúdo da TV, podemos
encontrar uma documentação bastante precisa não somente do nascimento da
‘criança adulta’, mas também do adulto ‘feito criança’ [...] Salvo raras
exceções, os adultos na televisão não tomam seriamente o próprio trabalho, não
educam seus filhos, não participam na vida política, não praticam nenhuma
religião, não representam nenhuma tradição, não têm capacidade de pensar o
próprio futuro ou de formular seriamente projetos de vida, não são capazes de
fazer longos discursos e não são nunca capazes de evitar comportamentos dignos
de uma criança de oito anos”[xvi].
Na atual sociedade “líquida” a fase adulta corre o
risco assim de reduzir-se a uma expressão de meros dados sem mais
responsabilidades específicas que a caracterizam e, sobretudo, a diferenciam
das fases precedentes da vida, conferindo-lhe uma identidade: ser adultos era
sinônimo de ser maduros, não certamente como as crianças, mas capazes de
assumir responsabilidades. Essas características aparecem sempre mais
raramente, ao ponto em que “não é excessivo falar de uma liquidação da idade
adulta. Estamos assistindo a uma desagregação daquilo que significava maturidade”[xvii].
Tradução ao português:
Pe. Anderson Alves e Joyce Scoralick.
[vii] Veja-se as célebres análises
de HEIDEGGER, M. “A questão da técnica”, In ID., Saggi e discorsi,
Milano, Mursia, 1991, p. 5 -27.
[viii] PREUD, S. “La sessualità
nell’etiologia delle neurosi”, in ID., Opere (1892-98), Torino,
Boringhieri, 1968, 410.
[ix] Cfr. GAUCHEI, M. Il figlio
del desiderio. Una rivoluzione antropologica, Milano, Vita e Pensiero,
2010, 70; cfr. 49. Cfr. os problemas levantados por PAROT, F. – TEITBAUM, E. Des
enfants sans toi ni moi, Paris, Flammarion, 2002, e por J. HABERMAS,
segundo o qual programar o nascimento comporta a “dificuldade de conceber-se
como autônomo”, também desde o ponto de vista da responsabilidade moral (L’avenir
de la nature humaine. Vers un éugenisme liberale, Paris, Gallimard, 2002,
82).
[x] O célebre estudo de Miller
sobre o alto custo que a nível afetivo paga a criança “constituída dote”, isto
é, sensível a acolher a necessidade do progenitor, reprimindo o próprio, se
insere nesta perversa dinâmica relacional, na qual os papéis são trocados. Esta
afetividade reemerge na idade adulta nos níveis nas quais tinha sido congelada,
e, uma vez adulto e progenitor, traz à tona uma série de desejos desatendidos.
Frequentemente tal situação está na origem da atração de profissões
relacionadas com o escutar e à ajuda, como a psicoterapia. Miller resume a
própria experiência dos seus vinte anos em relação a três elementos
fundamentais: “1) estava sempre presente uma mãe profundamente
insegura no campo emotivo, a qual para o próprio equilíbrio afetivo
dependia de um certo comportamento ou modo de ser de criança. Essa insegurança
podia facilmente ficar velada à criança e às pessoas do seu ambiente, escondida
atrás de uma fachada de durezaautoritária ou inclusive totalitária; 2) a
essa necessidade da mãe ou dos dois progenitores, correspondia uma surpreendente
capacidade da criança de percebê-lo e de dar-lhe resposta
intuitivamente; 3) em tal modo a criança se assegurava ‘o amor’ dos pais. Ela
percebia que tinham necessidade dela e isso legitimava a sua vida e o seu
existir” (MILLER, A. Il dramma dei bambino dotato e la ricerca del vero sé, Torino,
Boringhieri, 1999, 16 s). Daqui vem a dinâmica instintiva de ajuda aos outros,
mesmo na escolha da profissão, mas em forma perturbada, tendendo ao apagamento
dos vazios afetivos que não ficaram resolvidos no curso da infância.
[xi] Cfr. CUCA, «Il matrimonio,
ultimo simbolo di eternità dell’uomo occidentale», in Civ. Catt.
2011 II 431 433. Cfr. PHILIPS, A. I «no» che aiutatino a crescere,
Milano, Feltrinelli, 1999, 47 s.
[xii] Cfr. GRIMAL, P. Mitologia,
Milano, Garzanti, 2006, 475.
[xiii] KILEY,
D. The Peter Pan Syndrome: Men Who Have Never Grown up, New York, Avon
Books, 1984, 26 s.
[xiv] Ivi, 23.
[xv] RECALCATI, M. «Dove sono
finiti gli adulti?», cit., 56.
[xvi] POSTMAN, N. La scomparsa
dell’infanzia, Roma, Armando, 1984, 156; cfr. OLIVERIO FERRARIS, A. La
Síndrome Lolita. Perché i nostri figli crescono troppo in fretta, Rizzoli,
2008.
[xvii] GAUCHET, M. Il figlio
del desiderio…, cit., 42; cursiva no texto. Cfr. BOUTINET, J. P. L’immaturité
de la vie adulte, Paris, PUF, 1998; ID., Psychologie de la vie adulte,
ivi, 2002; ANATRELLA, T. Interminables adolescences. La psychologie des
12/30 ans, Paris, Cerf-Cujas, 1998; LADAME, F. Gli eterni adolescenti,
Milano, Salani, 2004.
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