O desaparecimento do pai
A contínua popularidade e atualidade de Peter Pan
não falam somente de uma dificuldade de crescimento. Esse personagem é também
uma forma de protesto em relação à fuga dos educadores, daqueles que podem
fazer bela, ainda que difícil, a missão de tornar-se adulto, deixando-o só: “Se
Peter Pan é o símbolo de um fenômeno que tem crescido sempre mais nos últimos
cem anos, ou seja, a obstinada vontade de permanecer criança, Peter Pan nos diz
ainda algo mais inquietante: perdemos os nossos pais como modelos, os pontos de
referência sólidos, fomos abandonados a nós mesmos”[xviii].
É significativo que autores das mais diversas
escolas de proveniência individuam particularmente na ausência da figura
paterna, acentuada dramaticamente nas últimas décadas, uma das principais
razões para o vazio de sentido e de identidade que parece ser comum a jovens e
a adultos. Um autor que não pode certamente ser etiquetado de tradicionalismo
nostálgico observa a esse propósito: “O vazio estrutural da moderna sociedade
ocidental provem da ausência do pai. Em certo sentido o enfraquecimento ou
inclusive o desaparecimento de todos os outros papéis de parentesco derivam
daquela lacuna que está no vértice da família”[xix]. Nessa falta, se
constata, de fato, a incapacidade de uma geração de transmitir valores e
tradições capazes de ajudar o futuro adulto a enfrentar as dificuldades da vida
tornando, por sua vez, educadores de outros.
O desaparecimento dos vínculos familiares foi
infelizmente visto como o sinal profético da vinda de uma nova sociedade; nos
anos setenta do século passado era desejada a morte do matrimônio e da família,
vista como o símbolo da opressão que penaliza a liberdade do indivíduo,
impedindo a auto realização[xx]. Os resultados se
revelaram, porém, muito diversos, precursores de problemas bem mais graves, que
correm o risco de levar ao desaparecimento da sociedade ocidental, como acentua
sempre Scalfari: “na maior parte dos casos o indivíduo, abandonado na sua
solidão, não encontrou outro remédio melhor do que o de confundir-se no bando,
isto é, de se tornar um sujeito anônimo e indiferenciado, sustentado somente
por motivações emocionais”[xxi].
Não é mais a comunidade ou o vinculo a um
determinado estrato social, mas sim “o bando” a caracterizar a sociedade sem
adultos, uma sociedade que abandonou o seu dever educativo.
Os Procis, filhos de um pai ausente
Essa linha de leitura vem confirmada também na
mitologia, na qual está narrada a história do homem e da mulher de todos os
tempos. A categoria de “bando” lembra os Procis, magnificamente descritos por
Homero, aquela massa numerosa (108 segundo a Odisseia XVI, 247 s.),
violenta e parasita, dominada por uma agressividade desenfreada.
Exatamente como Peter Pan, esses não são mais
crianças e nem mesmo homens; não fizeram nenhuma escolha em suas vidas; vivem
cada dia, dos expedientes, gozando do instante presente, sem nenhum projeto
pelo qual valha a pena empenhar-se. A atualidade psicológica e social desses
personagens é digna de atenção: “Os Procis [...] são a massa supérflua que logo
preenche todo vazio de poder na sociedade. Mas na psiché são o
adversário interno, a desagregação da responsabilidade [...]. O que Ulisses
odeia decididamente neles não é a arrogância – que não lhes é uma coisa
estranha – mas o viver cada dia, sem nenhum objetivo: o ato supérfluo (anenysto
epi ergo) [...]. Aquilo que esses representam não pode ser readmitido na
civilização, sob a pena da sua desagregação: a hilaridade, na qual o imaturo
esconde o seu medo; o dia para chegar a noite; a obstinação a conquistar a
mulher e a casa, a rainha e o palácio, sem a disponibilidade para organizar o sistema
familiar e econômico. Mais uma vez, é o quadro do jovem desadaptado”[xxii].
O desenvolvimento narrativo da Odisseia faz
agudamente notar como esses aparecem no dia seguinte ao desaparecimento do pai.
A partida de Ulisses conduz à proliferação daqueles: os Procis podem ser
considerados como a prefiguração ante litteram de Peter Pan. A
comparação de ambos, de fato, não é forçada: é a mesma mitologia grega a
colocar esses personagens em estreita relação entre eles. Pan seria, pois, o
fruto da múltipla união dos Procis com Penélope durante a ausência de Ulisses[xxiii].
Colocados de frente à “prova do arco” (que, como
veremos, é um símbolo da paternidade) se mostram incapazes de enfrentá-la
(tendendo o arco para lançar a flecha), isso é, de assumir uma responsabilidade
generativa que pode fazer deles homens. Têm idades diferentes, porém se
apresentam com uma única classe, amorfa, sem identidade.
Tradução ao português:
Pe. Anderson Alves e Joyce Scoralick.
[xviii] CATALUCCIO, F. M. Immaturità.
La malattia del nostro tempo, Torino, Einaudi, 2004, 40.
[xix] SCALFARI, E. «Il padre
che manca alla nostra società», in La Repubblica, 27 dicembre 1998.
[xx] Cfr. COOPER, D. La morte
della famiglia. Il nucleo familiare nella società capitalistica, Torino,
Einaudi, 1972.
[xxi] SCALFARI, E. «Il padre
che manca alla nostra società», cit.
[xxii] ZOJA, L. Il gesto di
Ettore. Preistoria, storia, attualità, scomparsa del padre, Torino
Boringhieri, 2000, 115 s.
[xxiii] Cfr. GRIMAL, P. Mitología,
cit., 476.
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