A tarefa de se tornar adultos
Mas o que significa ser adulto? Significa, antes de
tudo, aceitar não ser mais criança, renunciando aos valores e comportamentos de
idades precedentes para assumir a novos: a renúncia é a condição do
crescimento, como bem tinha intuído Max Scheler[xxiv].
Deixar uma fase: isto é o que o adulto atual não
parece mais capaz de fazer, antes de tudo, a nível imaginativo, lamentando-se
sempre da criança ou do adolescente que jamais foi. Trata-se, porém, de acolher
o que Freud chamava de o princípio da realidade que passa por uma ferida, uma
experiência de impotência e de mortalidade que, paradoxalmente, no momento no
qual vem assumido, fortalece o ser humano.
Isto era o significado dos “ritos de passagem” ou
de iniciação, que nas sociedades de cada época marcavam o ingresso do jovem na
idade adulta, mediante cerimônias guiadas por adultos. Os ritos de iniciação
resultam fundamentais porque têm como objeto a agressividade, o sofrimento e a
morte, em outras palavras, o ser humano na sua verdade e fragilidade. O rito
podia fazer isso, porque recordava a sacralidade da vida e a sua relação com
Deus; isso era o significado do gesto de tirar com violência a criança dos
braços da mãe (que até aquele momento era o ponto de referência peculiar) para
elevá-la ao céu, um gesto com o qual ela recebe a confirmação da própria
identidade: “O significado desse gesto é claro: se consagram os neófitos ao
Deus celeste”[xxv]. Essa tarefa
sempre foi peculiar do pai.
Quando não se cumprem os ritos de iniciação, esses
não desaparecem, mas enlouquecem, dando origem às derivas do “bando”. As
violências das baby gang, o bullying masculino e feminino, os
estupros de grupo, os “embalos de sábado à noite”, os comportamentos de risco,
o uso de drogas em grupo, a atração pelo macabro são ritos de iniciação
enlouquecidos, pedidos degenerados de tomar contato com a dimensão da
corporeidade, da relação, da agressividade, do perigo, da morte, mas sem que
exista, no entanto, um adulto capaz de acompanhar-lhes.
O desaparecimento dos adultos se traduz também numa
redefinição dos papéis familiares: não são mais os filhos que devem aprender
dos pais e receber deles normas e ensinamentos, mas ao contrário, são os pais
que se conformam aos critérios e aos comportamentos dos filhos, procurando
desse modo conseguirem a aprovação deles.
A necessidade de um modelo
Para ser adulto deve-se, pois, ter recebido uma
ferida, aquela ruptura violenta que caracteriza o ingresso na realidade
representada pelos ritos de iniciação. Tomar contato com aquela ferida significa
para o jovem reconhecer e acolher a própria fragilidade. Isso lhe permite
afrontar a realidade, abandonando as fantasias pueris e reconhecendo os
próprios desejos profundos. Tornar-se adulto não significa de nenhuma maneira
sentir-se onipotente, livre de defeitos ou limites, mas ocupar o próprio lugar,
aceitando a possibilidade de equivocar, acolhendo o tempo que passa[xxvi].
O primeiro ensinamento que Deus dá ao homem na
Bíblia é exatamente esse: se queres viver, se queres saborear a vida,
recorda-te de que eres criatura, de que não és Deus. Isso é expresso na
proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (cfr. Gn.
2, 16): no trecho, aquela árvore simboliza o próprio Deus e o homem deve
preservar-se do desejo de querer tomar-lhe o posto, porque acabará se
destruindo. Naquele ensinamento podem-se conter as três etapas fundamentais do
desenvolvimento humano: o nascimento, o desaleitamento, a derrota edípica.
Essas constituem as três diferentes derrotas da onipotência, são os três
“pontos de não-retorno” próprios do crescimento (em relação à condição
pré-natal, ao aleitamento, a um ligame exclusivo com a mãe), indispensáveis
para entrar na realidade, para ser “vivo”. Se cumpridas corretamente, essas
três renúncias permitem, na idade adulta, fazer escolhas definitivas; por outro
lado, a maior parte das dificuldades e do desgosto de viver é ligada exatamente
a esses três aspectos.
À raiz de muitos pedidos de ajuda psicológica está
frequentemente a não aceitação da própria verdade de criatura, marcada pelo
limite e pela fragilidade: não se aceitar a si mesmo, antes de tudo o próprio
corpo (pensemos no boom de cirurgias plásticas e do lifting com
consequências também graves para a própria saúde, mas também nos distúrbios
alimentares como a bulimia e a anorexia), não se aceita a própria família de
proveniência, a própria história e personalidade.
Dever fundamental da mãe e do pai, o qual, como
visto em outras ocasiões, é símbolo forte do Pai celeste, é apresentar
novamente aos próprios filhos esse ensinamento do livro de Gênesis[xxvii], de tomar
consciência dos próprios limites, condição fundamental para se tornar adulto e
para produzir frutos na própria vida. Os pais podem fazer isso porque
precedentemente acertaram as contas com a própria fragilidade, com a própria
ferida originária[xxviii].
Se os pais querem, em vez, salvaguardar os filhos
de todo tipo de dificuldade, isso levará ao aparecimento de dúvidas e
frustrações interiores, que minam, à raiz, a estima de si e a capacidade de
assumir responsabilidades. Principalmente os filhos terão dificuldades em aproximar-se
aos seus desejos profundos, àquilo que realmente querem das suas vidas: “A
clínica dos assim ditos novos sintomas mostra bem como o problema da atual
insatisfação da juventude não seja tanto aquele do conflito entre o programa do
impulso e aquele da Civilização [...], mas de como aceder à experiência do
desejo [...]. A crise atual da operabilidade da ordem simbólica coincide com a
crise do poder de interdição, mas também com a dificuldade da transmissão do
desejo de uma geração a outra”[xxix].
Trata-se de saber dizer “não”, de colocar limites,
impopulares certamente, mas que permitam de aceder ao desejo do coração e
tornam capaz de superar os obstáculos que se entrepõem à realização dos mesmos.
O limite e a frustração são elementos essenciais da educação, ainda que
acompanhados do afeto e da confiança. Às vezes é o filho mesmo a pedir esse
limite e que uma relação assimétrica (de adulto a filho) seja posta, também em
forma não verbal, como no caso da garota surpreendida roubando em uma grande
loja: “Essa jovem não estava simplesmente fraudando a lei ou gozando da emoção
causada pela sua transgressão. Em modo paradoxal, ela estava fazendo exatamente
o contrário: estava buscando ser vista pela lei, isto é, de fazer existir uma
lei. ‘Alguém me vê? Alguém pode me ajudar a não me perder, a não me extraviar?
Existe em qualquer lugar uma lei ou, mais simplesmente, um adulto que possa
responder-me, que possa perceber a minha existência?’ A pergunta dos nossos
jovens insiste e nos coloca com as costas contra o muro: ‘Vocês existem? Os
adultos ainda existem? Há alguém ainda que saiba assumir responsavelmente o peso
da própria palavra e dos próprios atos?’ Na cleptomania daquela garota podemos
perceber toda a grandeza da insatisfação da juventude contemporânea”[xxx].
O filho pode compreender o valor do limite se vê
nos pais não um tirano que o rejeita, nem o “camarada” que se coloca no mesmo
nível dizendo-lhe sempre “sim”, mas alguém que o introduz com afeto na realidade,
na sua dimensão de mediocridade e de fragilidade. O adulto pode fazer isso
porque antes a acolheu em si mesmo. Isso lhe consente não colocar-se no mesmo
nível daquele que é chamado a educar e de não ceder a chantagens afetivas.
Não se trata certamente de uma tarefa fácil: essa
é, porém, o único modo para não fazer do filho um escravo dos próprios
caprichos. A incapacidade de dizer “não” é um dos sinais mais fortes da crise
do adulto e da perigosa inversão da derrota edípica, uma inversão inédita, na
qual são os pais a pedir aos filhos de serem reconhecidos[xxxi].
Retomar o arco de Ulisses
A crise do adulto, reconhecida e descrita pela
mitologia, pode encontrar, na mesma mitologia, possíveis saídas. Toda a
primeira parte da Odisseia é chamada de Telemaqueia, a busca
afanosa pelo pai ausente, por parte do filho. Ele não se resigna com o seu
desaparecimento, mas deseja ver o pai, ainda que não o tenha jamais conhecido
verdadeiramente, anseia de poder ter dele ao menos uma imagem para ser impressa
na sua mente[xxxii].
O caso de Telêmaco é muito parecido à situação da
juventude atual. Para ambos não são, certamente, algumas coisas que lhes
faltam, nem mesmo o bem-estar; esses se descobrem, às vezes, desprovidos daquela
representação ideal de si que somente o pai é capaz de dar.
Na Odisseia, Ulisses pode ser finalmente
reconhecido como pai somente quando, no final da poesia, o filho o vê empunhar
o arco, com aparência humilde, mas decidido: “parece que Homero pensou nos
nossos tempos e que nos advertiu: jamais o pai desaparece totalmente. Mas não
creiais de reencontrá-lo nos machos barulhentos: aqueles são os Procis, os
eternos não-adultos. Se alguém, em vez, é humilde, paciente, poderia ser ele, o
sobrevivente de guerras e tempestades”[xxxiii].
O arco pode simbolizar o papel e a tarefa do pai,
que não é delegável; e, de fato, nenhum dos Procis tem a capacidade de
manejá-lo, porque não possuem autoridade para isso. Mas o pai do qual se fala
não é certamente o pai-patrão que caracterizou as nossas sociedades dos últimos
dois séculos, levando ao final à sua rejeição e afastamento. Ulisses, em vez,
diz com precisão Homero, sabe tender o arco como um músico acaricia a harpa,
associando com esse gesto as duas funções essenciais do pai: a força e a
ternura[xxxiv].
Somente quando é capaz de unirem em si essas duas
virtudes, a autoridade e a ternura, Ulisses pode novamente empunhar o seu arco
e meter fim à “noite dos Procis” [xxxv].
Tradução ao português:
Pe. Anderson Alves e Joyce Scoralick.
[xxiv] Cfr. SCHELER, M. Il
risentimento nella edificazione delle morali, Milano, Vita e Pensiero,
1975, 53.
[xxv] ELIADE, M. La nascita
mistica. Riti e simboli d’iniziazione, Brescia, Morcelliana, 1974, 24; cfr.
tbm. ZOJA, L.: «A elevação da criança entre os Romanos servia ao nascimento
psíquico do filho e do pai como pai» (Il gesto di Ettore …, cit.,
247; cursiva no texto). De outra época e cultura, veja-se a descrição de
MANDELA, N. culminante com o grito “Ndiyindoda! (‘Sou um homem!’)” (Lungo
cammino verso la libertà, Milano, Feltrinelli, 2010, 35). Sobre os ritos de
iniciação permanecem fundamentais os estudos de VAN GENNEP, A. I riti di
passaggio, Torino, Boringhieri, 1981.
[xxvi] Cfr. RECALCATI, M. Cosa
resta del padre? La paternità nell’’epoca ipermoderna, Milano, Cortina,
2011, 111-115.
[xxvii] Para ser mais preciso, os
dois primeiros aspectos vêem a mãe como protagonista, o terceiro não redutível
apenas à derrota edipiana, é próprio do pai e reflete o simbolismo mais
complexo dos ritos de iniciação. Na realidade, ambos os pais também são
fundamentais na diferente especificidade de suas intervenções, para a ajuda
mútua que são chamados a dar-se, nas diferentes fases da vida dos filhos (cf.
Cucci, G. Esperienza religiosa e psicologia, Leumann [To] – Roma,
Elledici – La Civiltà Cattolica, 2009, 79,98;. ID., La forza dalla
debolezza. Aspetti psicologici dela vita spirituale, Roma, Adp, 2011,
121-133).
[xxviii] Cfr. RISÉ, C. Il
padre, l’assente inaccettabile, Cinisello Balsamo (Mi), San Paolo, 2003,
14-24. C. CUCCI, “o pai é chamado a desenvolver um papel decisivo n avida de
fé”, in Civ. Catt. 2009 III 118-127; “Il suicidio giovanile. Una
drammatica realtà del nostro tempo”, ivi, 2011 II 121-134.
[xxix] RECALCATI, M. Cosa resta
del padre? …, cit., 105-107. Cfr. CUCCI, G. «Il desiderio, motore della
vita», in Civ. Catt., 2010 I 568-578.
[xxx] RECALCATI, M. “Dove sonno
finiti gli adulti?”, cit., 57.
[xxxi] Cfr. ID., Cosa resta del
padre? …, cit., 108 s.
[xxxii] “Na Telemachia o
protagonista busca notícias do pai não só para saber onde era e para saber como
era, mas, sobretudo, para conhecer a personalidade e desenvolver a si mesmo
segundo aquele modelo» (PRIVITERA, G. A. Il ritorno del guerriero. Lettura
dell’Odissea, Torino, Einaudi, 2005, 57; cfr. HOMERO, Odisseia, Torino,
Utet, 2005, 1. I, 83.111.115 s. 240; 1, IV, 317).
[xxxiii] ZOJA, L. Il gesto di
Ettore, cit, 113 s; HOMERO, Odissea, cit., XVI, 148 s.
[xxxiv] “O astuto Odisseu, não
apenas deliberou e em todas as partes provou o grande arco, como quando um
homem experto em tocar citra e em cantar move facilmente a corda [...]
imediatamente moveu assim, sem esforço, o grande arco” (HOMERO, Odisseia, cit.,
XXI, 404-410).
[xxxv] ZOJA, L. Il gesto di
Ettore…, cit., 305.
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