terça-feira, 29 de maio de 2012

Pentecostes - O espetáculo das diferenças transfiguradas


“Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes, então, uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (At 2, 1-4).


O conhecimento que se tem hoje a respeito do episódio de Pentecostes provém desta narrativa do evangelista São Lucas. A cena descrita pelo autor dos Atos dos Apóstolos me intriga por uma razão em especial: os discípulos de Jesus não tinham motivo algum para estarem “no mesmo lugar”. O mestre não estava mais entre eles e, se essa turma já brigava enquanto vivia com Jesus, imagine depois de sua morte. Juntar-se naquelas circunstâncias seria criar as condições para que surgissem desavenças ainda maiores.

O que reunia aqueles homens e mulheres ali eram a insana ordem de permanecer em Jerusalém e a incompreendida promessa de que naquela cidade seriam batizados no Espírito Santo. Ordem e promessa proferidas pela boca de Jesus (cf. At 1, 4-8). Insana, porque em Jerusalém estavam aqueles que queriam matar os discípulos, a saber: os chefes do povo judeu, os mesmos que haviam arquitetado a crucifixão do Senhor. O fato de não compreenderem bem o que Jesus havia dito por ocasião da ascensão, isso os deixava sem condições de garantir que aquela promessa se cumpriria. Tudo o que podiam fazer era “esperar”. Ora, se já é difícil esperar por uma coisa certa, quanto mais por uma promessa.
Por isso eu fico pensando no que os discípulos realmente estavam fazendo naquele cenáculo antes da manifestação do Espírito Santo. Só me vem uma coisa na cabeça: eles estavam comendo. Até porque estavam sentados e era por volta de oito horas, boa hora para uma refeição matinal. Essa hipótese procede tanto mais pelo fato de que não é cena incomum nos evangelhos os discípulos comendo com Jesus. Ou melhor: Jesus comendo com os discípulos. Nos evangelhos, é mais fácil ver o mestre comendo do que jejuando.

Jesus chegou a ser acusado de comilão, dada a frequência com que se sentava para refeição (cf. Lc 7, 34). Quando ensinava, ele abusava das metáforas com alimentos: grão de trigo, grão de mostarda, o semeador, a videira, o fermento, etc. Frequentemente, comparava o céu a um banquete (cf. Mt 22, 1-4; 25, 10). A própria vontade do Pai, Jesus disse ser seu “alimento” (cf. Jo 4, 34). E, no limite, afirmou ser ele mesmo o “pão da vida” (cf. Jo 6, 35).

Quando ensinou a orar, não esqueceu de recomendar aos discípulos que pedissem pão (cf. Lc 11, 3). Antes de morrer, sabendo de tudo o que ia lhe acontecer, Jesus disse aos seus amigos: “Tenho desejado ardentemente comer convosco antes de sofrer” (Lc 22, 15). Quem se lembraria de comer momentos antes de passar por uma situação de sofrimento, angústia e morte? Os discípulos estavam tão acostumados em ver Jesus comendo, que quando ele disse a Judas: “O que tens a fazer, faze-o logo”, eles pensaram que estava mandando comprar comida (cf. Jo 13, 29).

Especialmente depois da ressurreição, isso se torna redundante. Quando apareceu aos cinco discípulos, a primeira coisa que Jesus perguntou foi: “Amigos, tendes alguma coisa para comer?” (Jo 21, 4). Também pudera: três dias no sepulcro, devia estar com muita fome. A aparição narrada por Marcos (16, 14) se dá durante uma refeição. Em Lucas (24, 36-43) Jesus anuncia a paz e os discípulos pensam que estão vendo um espírito; Jesus, então, manda que eles o apalpem, diante do que os discípulos ainda permanecem relutantes. Tudo se esclarece quando Jesus come para mostrar que era ele mesmo. Não é de estranhar que tenha sido reconhecido em Emaús, justamente quando partiu o pão (cf. Lc 24, 30-31).

Será que Jesus incutiu esse hábito no grupo de discípulos, para que tivessem um pretexto de se reunir após a sua morte? Não se sabe. O fato é que, naquela refeição no cenáculo, ocorreu algo determinante. Um grande espetáculo, na verdade! De repente, ouviu-se um ruído e, em seguida, apareceram línguas de fogo sobre as cabeças de todos. Deve ter sido estranho, assustador até. Mas era o Espírito Santo.
Neste caso, os fenômenos externos (ruído, línguas de fogo) são sinais que visam impactar, chamar a atenção. Mas a realidade em si é o Espírito Santo mesmo. Note-se que é a casa que fica cheia do ruído, enquanto são as pessoas que ficam repletas do Espírito Santo. Desta forma, aqueles que obedeceram a uma única ordem e acreditaram numa mesma promessa de Jesus, viveram igualmente uma única experiência: a de serem batizados no Espírito.

O Espírito Santo como que assumiu o lugar de Jesus. A partir de Pentecostes, ele é o novo “ponto de convergência” dos discípulos, em quem estes encontram e fundamentam sua unidade. Daí a importância de Pentecostes para a vida em comunidade.

Porém, ao contrário do que dizem alguns, os discípulos em Pentecostes não começaram a falar uma mesma língua. É interessante isto. A expressão está no plural: começaram a falar outras línguas. Pentecostes se opõe a Babel justamente por isto: em Babel, eles falavam uma única língua e não se entendiam (cf. Gn 11, 1.7); no cenáculo, as várias línguas se traduzem em comunhão.

Isso significa que Pentecostes não é um episódio que denota uniformidade e nem seus frutos uma unanimidade. Muito ao contrário. Pentecostes revela um amplo quadro de diversidade: as línguas se repartem (não uma só), repousam sobre cada um (respeito à individualidade) e o Espírito Santo começa sua distribuição de dons. Para mim está claro que o que aconteceu em Pentecostes não foi um espetáculo de “iguais”, mas um “batismo de diferenças”. O Espírito Santo não eliminou a individualidade dos presentes, nem quis que eles se tornassem um todo homogêneo em torno de uma unidade forjada e despótica.

Entretanto, o que me surpreende é como esse quadro plural descrito nos primeiros versículos do capítulo dois de Atos contrasta com aquele apresentado pelo mesmo Lucas mais adiante. “Contrastes” são próprios de Lucas, mas neste ele extrapolou, pois a descrição posterior apresenta uma comunidade quase em comunhão celestial:

A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum. Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, segundo a sua necessidade (At 4, 32.34 – grifos meus)

Alguns afirmam que este painel a respeito da vida da comunidade cristã primitiva é, na verdade, um quadro ideal – talvez idealizado – da vida fraterna pós-pentecostes. Dessa maneira, ele seria apenas uma referência utópica, sem possibilidade de ser encontrado em sua forma pura. Esta interpretação tem certa coerência, mas discordo de que Lucas tenha traçado esse quadro com base em quimeras. Para mim, é difícil imaginar que um autor como ele, preocupado com a autenticidade das fontes históricas e com o relato preciso dos acontecimentos, tenha feito um parêntese justamente no momento de expor algo tão importante para as gerações futuras dos cristãos.

Toda a narrativa lucana (Evangelho e Atos) não é poesia, mas testemunho. Lucas não ignora as tensões existentes na comunidade primitiva. Exemplo emblemático disto é a narração do episódio de Ananias e Safira, personagens cuja mesquinhez ele parece querer contrastar com a generosidade de Barnabé (cf. At 4, 36- 5, 11).

Então, porque esse contraste? A resposta encontra-se no fato de as duas narrativas são construídas com base no seu fenômeno (em sentido filosófico), ou seja, naquilo queaparece. Em Pentecostes, o que está em evidência são as diferenças. Na descrição da primeira comunidade cristã, sobressai-se a unidade. Mas assim como o pluralismo de Pentecostes não impediu Lucas de ver que todos estavam cheios de um único Espírito, aqui, a unidade não deve impedir de enxergar as diferenças que estão na base da vivência fraterna dos primeiros discípulos.

Na verdade, as diferenças são o fundamento da vida comunitária. É sobre elas que se constrói a convivência fraterna. Dizendo de outro modo: elas são a matéria prima da unidade. Lógico: se a unidade existisse a priori, não haveria indivíduos (e, portanto, não haveria fraternidade, mas mesmice). Isso implica dizer que a diversidade já contém a unidade em potencial e que as diferenças, apesar de não constituírem toda a vida fraterna, estão na sua base.

Numa comunidade realmente fraternal, a diversidade é o que menos aparece para o mundo, mas ela é experimentada de maneira muito concreta no interior da vida comunitária. A experiência com o diferente é a única forma de manifestar ao mundo a beleza da unidade.

E atenção: eliminar diferenças é também uma maneira de extinguir o Espírito. Pois uma comunidade que faz isso (por força de sua estrutura ou pela ignorância de seus membros) se transformará num sistema impessoal no qual os indivíduos, de certa maneira, deixam de existir, dando lugar a uma funcionalidade fria e amorfa. Isso seria Babel e não Pentecostes.

Mas o resultado de pessoas (note-se bem) cheias do Espírito Santo é a gestação de uma comunidade cujo rosto aparece para além de suas diferenças. O que ocorre é que a comunidade transcende sua diversificação, emergindo uma unidade que não é apenas aparente, mas real. A comunidade chega à comunhão sem deixar de ser diversa.

O Espírito Santo gera as diferenças? Não. Elas já existem. Faz com que se aproximem? Também não: elas se aproximam por si mesmas (já estavam reunidos). Diferenças apenas aproximadas criam somente tensões. Então, o Espírito elimina as diferenças? Muito menos ainda. O quê, então? O Espírito Santo transfigura as diferenças. No mesmo sentido em que ocorre em Mt 17, 1-8. Nesse episódio, Jesus subiu à montanha com Pedro, Tiago e João, transfigurando-se diante deles: “Seu rosto resplandeceu como o sol e as suas vestes tornaram-se alvas como a luz” (v. 2b). As características individuais de Jesus permaneceram; ele não se tornou irreconhecível. Porém, sua imagem transcendeu.

É exatamente isto que ocorre na comunidade cheia do Espírito: as pessoas (ainda sendo pessoas) têm sua singularidade revestida. Elas se tornam semelhantes (movimento assemelhado ao movimento trinitário)E, nesse sentido, elas se transfiguram a si mesmas e transfiguram as suas diferenças. E isso aparece para o mundo com uma força impressionante. Uma comunidade de amor fraterno tem a capacidade de provocar êxtase, deixando estupefatos os homens de hoje, carentes de comunhão fraterna.

O êxtase é provocado não pela uniformidade, mas pelas diferenças transfiguradas. É isto que deixa o mundo intrigado: como pessoas tão diferentes podem ser tão unidas (ou iguais, ou assemelhadas). Acho que Jesus pensava nisso quando disse: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” ( Jo 13, 35). Muito se mitificou desse versículo. Pretendeu-se um amor piegas, uniformizado, controlado, quando na verdade Jesus propunha aquilo que faria em Pentecostes: a transfiguração das diferenças, mediante o que cada crente sai de si e acolhe o diferente, emergindo para o mundo um grande espetáculo.

Os acontecimentos da transfiguração e da união dos primeiros cristãos reservam, ao final, cada qual uma surpresa. Em Mateus, os discípulos erguem os olhos e não vêem mais Moisés e Elias, senão Jesus sozinho. Esse recorte induz a pensar que a solidão também é componente da vida fraterna. Faz parte de sua própria natureza e não é uma distorção ou carência dela. Assim, momentos de solidão e deserto devem ser vividos por cada membro de uma comunidade como espaços privilegiados de encontro com Deus e não como uma ausência dos irmãos, como uma insuficiência de vida fraterna. A solidão é o elemento pelo qual se percebe que por mais intenso, sadio e gostoso que seja viver em comunidade, os irmãos jamais serão capazes de preencher a saudade que cada um tem do Infinito. Há um lugar de encontro pessoal e único com Deus, um lugar deserto, só de Deus: “Eu o conduzirei para o deserto e lhe falarei ao coração” (Os 2, 16).

Lucas, por sua vez, revela que os discípulos, apesar de todas as mudanças pelas quais passaram, numa coisa continuavam os mesmos: “Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração” (At 2, 46 – grifo meu). Continuavam comendo o quanto podiam. E isso os identificava ainda mais como discípulos de Cristo (acusado de comilão), cativando a simpatia do povo (cf. At 2, 47).

Talvez muitos daqueles que se aproximaram da comunidade primitiva tenham sido atraídos pela comida (como se verá nas querelas que surgem posteriormente nas comunidades paulinas: brigas que envolvem alimentos). Mas o que importa e que “todos estavam a caminho da salvação”. Bom, é claro que o mais importante é chegar lá. Mas se no caminho tiver alguma coisa pra mascar…
Ronaldo José de Sousa
Co-Fundador e Formador Geral
da Comunidade Remidos no Senhor

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