terça-feira, 23 de abril de 2013

Um concílio ainda em caminho

Interpretação e recepção do Vaticano II.  A alegria de Deus suscitou-se em nós: não deixemos que se perca.

Era a época da guerra fria. Um ano antes do início do Concílio, tinha-se construído o Muro de Berlim e, durante o período da primeira sessão, o mundo se viu à beira do abismo da guerra atômica por causa da crise de Cuba. Hoje, cinquenta anos depois, vivemos num mundo globalizado, completamente diferente e em rápida transformação, com novas questões e novos desafios. A fé otimista no progresso e o espírito de se encaminhar em direção a novos horizontes esfumaram-se há muito tempo. Para a maior parte dos católicos, os desenvolvimentos postos em marcha pelo Concílio fazem parte da vida cotidiana da Igreja. Todavia, o que experimentam não é o grande avanço, não é a primavera da Igreja, que então esperávamos, mas sim, na verdade, uma Igreja com aspecto de inverno, que mostra claros sinais de crise.

Para quem conhece a história dos vinte concílios reconhecidos como ecumênicos, isso não constituirá uma surpresa. Os tempos pós-conciliares foram quase sempre turbulentos. O Vaticano II, porém, representa um caso particular. Diferentemente dos concílios precedentes, não foi convocado para excluir doutrinas heréticas nem para recompor um cisma, não proclamou dogma formal algum, nem sequer assumiu deliberações disciplinares formais. João XXIII tinha uma perspectiva mais ampla. Viu que se perfilava uma nova época, a cujo encontro foi com otimismo, na inamovível confiança em Deus. Falou de um objetivo pastoral do Concílio, tendo em vista uma posta ao dia (“aggiornamento”), um “tornar-se hoje” da Igreja. Não se queria uma adaptação banal ao espírito dos tempos, mas o apelo a fazer com que a fé transmitida no hoje falasse.

A grande maioria dos Padres conciliares captou a ideia. Quis acolher as demandas dos movimentos de renovação bíblica, litúrgica, patrística, pastoral e ecumênica, surgidos entre as duas guerras mundiais, começar uma nova página da história com o Judaísmo, carregada de agravos, e entrar em diálogo com a cultura moderna. Foi o projeto de uma modernização, que não queria nem podia ser modernismo.

Uma minoria influente opôs obstinada resistência a essa tentativa da maioria. O sucessor de João XXIII, Paulo VI, estava fundamentalmente na parte da maioria, mas tratou de engajar a minoria e, na linha da antiga tradição conciliar, de obter uma aprovação, o mais possível unânime, dos documentos conciliares, que foram dezesseis no total. Conseguiu, mas pagou-se um preço. Em muitos pontos, tiveram-se de achar fórmulas de compromisso, nas quais, amiúde, as posições da maioria figuram imediatamente ao lado daquelas da minoria, pensadas para delimitá-las.

Assim, os textos conciliares têm em si um enorme potencial de conflito, abrem a porta a uma recepção seletiva numa ou noutra direção. Que direção indica a bússola do Concílio e para onde conduz o caminho da Igreja Católica no ainda jovem século XXI? Permanece na confiança crente de João XXIII ou faz o caminho contrário, em direção a estéreis atitudes de defesa?

Podem-se distinguir três fases da recepção conciliar até os nossos dias. Em primeiro lugar, a fase da recepção entusiástica. Karl Rahner, logo depois de ter voltado do Concílio, numa conferência em Munique, falou do “início do início”. Mas Rahner permaneceu cautelosamente cético no que dizia respeito ao futuro. Outros foram além e quiseram deixar de lado o que consideraram elementos da tradição arrastados pelo Concílio como acessórios, fruto de compromisso, e, como Hans Küng, fazendo um salto de quase dois mil anos de história da Igreja, interpretaram a doutrina da Igreja de um modo todo novo, partindo da Sagrada Escritura.

A reação não se fez esperar por muito tempo. Veio não só do Arcebispo Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, por ele fundada, mas também de teólogos que, durante o Concílio, tinham-se posicionado entre os progressistas (Jacques Maritain, Louis Bouyer, Henri de Lubac). Diferentemente de Lefebvre, não criticaram o Concílio em si, mas a sua recepção. De fato, nas primeiras duas décadas depois do Concílio, teve-se um êxodo de muitos sacerdotes e religiosos, em muitos âmbitos, conheceu-se um decaimento da prática eclesiástica ao lado de movimentos de protesto de sacerdotes, religiosos e leigos. O Papa Paulo VI falou de “fumaça de Satanás”, entrada por alguma fresta no templo de Deus.

Ainda hoje, alguns críticos consideram o Vaticano II, no contexto da história da Igreja, como uma desgraça e como a maior calamidade dos tempos recentes. Representa, porém, um curto-circuito achar que tudo o que aconteceu depois do Concílio tenha acontecido por causa do Concílio. Os críticos ignoram tendências bem consolidadas, já em ato antes do Concílio, que conheceram notável aceleração nos distúrbios sociais relacionados com o protesto dos jovens e dos estudantes em 1968. Depois de 1968, as tendências emancipadoras tiveram efeito inclusive no âmbito eclesiástico. Durante o Concílio, os progressistas foram os verdadeiros conservadores, que queriam renovar a tradição antiga. Depois, tomaram a palavra progressistas de um novo tipo, que não se orientavam tanto no sentido da tradição antiga, mas no dos “sinais dos tempos”, querendo interpretar o Evangelho com base na situação social transformada.

O Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, vinte anos depois do fim do Concílio, iniciou a terceira fase da recepção. O Sínodo teve a missão de fazer um balanço. Consciente da crise, não quis unir-se, porém, ao coro dos lamentos. Falou de uma situação ambivalente, em que, além de aspectos negativos, havia também frutos bons: a renovação litúrgica, que levara a uma ênfase maior na Palavra de Deus e a uma participação maior de toda a comunidade celebrante, a participação e a cooperação reforçada dos leigos na vida da Igreja, as aproximações ecumênicas, as aberturas ao mundo moderno e à sua cultura, entre outros muitos.

Fundamentalmente, o Sínodo sublinhou que a Igreja, em todos os concílios, é sempre a mesma e que o último Concílio deve ser interpretado em relação com todos os outros. Com essa regra hermenêutica, o Sínodo tornou-se um ponto de cristalização da terceira fase da recepção, a fase magistral. O primeiro passo oficial da recepção foi a reforma litúrgica: foi, sobretudo, a introdução do novo Missal, entrado em vigor no primeiro Domingo do Advento de 1970. Essa reforma, acolhida com gratidão por ampla maioria, encontrou também críticas, em parte por razões teológicas e, em parte também, porque alguns tinham nostalgia da sacralidade e da estética do rito em uso até então.

Os documentos conciliares não permaneceram letra morta. Deixaram sua marca na vida das dioceses, paróquias e comunidades religiosas, através da renovação da liturgia, de uma espiritualidade caracterizada por um mais forte aspecto bíblico e pela participação dos leigos, estimulando ainda o diálogo ecumênico e inter-religioso. O Concílio foi acolhido positivamente, em particular, pelos novos movimentos espirituais surgidos nos anos setenta, que trouxeram à luz, de um modo novo, a multiplicidade dos carismas e a vocação universal à santidade.
Nem sequer a recepção oficial permaneceu estática. Em parte, ultrapassou o Concílio, no âmbito das reformas litúrgicas, em que o texto conciliar se atinha ainda ao latim como língua litúrgica normal e não se falava de celebração orientada em direção ao povo. O mesmo vale para as indicações sociais e éticas do Papa João Paulo II para levar a efeito a liberdade religiosa, mediante a rescisão de concordatas que colidiam com ela e, enfim, para a “política” dos direitos humanos, com a qual João Paulo II forneceu uma contribuição essencial para a derrocada das ditaduras comunistas da Europa Oriental. Vale ainda apontar a sua encíclica sobre o ecumenismo, Ut unum sint (1995), que aprofundou os enunciados ecumênicos do Concílio, levando-os adiante com energia. Tudo isso transformou positivamente, sob muitos aspectos, o rosto da Igreja tanto interna quanto externamente. O ecumenismo, outro tema importante, deu muitos frutos bons, mais do que se poderia esperar nos tempos do Concílio.

Uma Igreja que se apoia nas correntes em voga da sociedade torna-se, em última análise, supérflua. Não se torna interessante se se adornar com plumas que não são suas, mas se fizer valer a própria causa de modo credível e convincente, aparecendo como anteparo frente à opinião pública dominante. Cinquenta anos depois de sua abertura, há ainda ocasião para ocupar-se, de maneira aprofundada, dos textos do Concílio, de modo a extrair-lhes os tesouros, ainda não exauridos, que ali se encontram. Naturalmente, não se pode mitigar o Concílio nem reduzi-lo a um par de frases de efeito. Tampouco se pode usá-lo como pedreira de que tomar material para teses pontuais que se queiram provar. É necessária uma hermenêutica conciliar, ou seja, uma interpretação meditada.

Ponto de partida hão de ser os textos conciliares, cuja interpretação deve ser feita segundo as regras e os critérios universalmente reconhecidos para a interpretação de concílios. É preciso extrair o sentido de cada afirmação, com cautela, da história da redação, amiúde complexa; depois, é preciso colocá-la no conjunto, articulado e rico de tensões, de todas as afirmações conciliares; é preciso, ainda, entendê-la no conjunto de toda a Tradição e do seu desenvolvimento histórico, como também da recepção ocorrida no meio tempo. Enfim, cada afirmação isolada há de se interpretar, no quadro da hierarquia das verdades, partindo-se do seu centro cristológico. A recepção, sob a direção e a moderação do Magistério, é questão de todo o povo de Deus.

Importante indicativa ulterior foi dada pelo Papa Bento XVI, num discurso aos cardeais e colaboradores da Cúria romana, pronunciado no dia 22 de dezembro de 2005, por ocasião do quadragésimo aniversário de encerramento do Concílio. Ele assim introduziu a fase mais recente do debate sobre a interpretação do Concílio. Esclareceu que o consenso não deve ser apenas sincrônico (dizendo respeito à Igreja atual), mas também diacrônico (dizendo respeito à Igreja de todas as épocas). Contrapôs duas hermenêuticas: a da descontinuidade e da ruptura, que rejeitou, e a da “reforma, da renovação”. As palavras do Papa foram interpretadas, frequentemente, de forma unilateral, deixando-se de considerar que ele não contrapôs, como muitos o afirmam, a hermenêutica da descontinuidade à hermenêutica da continuidade. O Papa falou de uma hermenêutica da reforma e da “renovação na continuidade” da Igreja.

Reforma é, no conjunto da Tradição medieval, um termo fundamental e um desafio sempre reproposto. Reforma não significa apenas a necessária adaptação prática de parágrafos isolados a situações novas. Quem fala de reforma, pressupõe que subsistam deficiências e disfunções a tornarem necessário o remontar-se a tradições mais antigas, esquecidas, em particular ao início apostólico, renovando-o criativamente.

O discurso do Papa sobre a reforma e a renovação na continuidade, reflete uma concepção viva da Tradição que, se às argumentações fundamentais se seguirem consequências práticas, poderia reacender o fogo do Concílio, ou seja, poderia, na continuidade, trazer de novo o impulso inovador do Concílio.

Perguntemos: Como pode aparecer tal renovação e para onde pode dirigir-se o seu caminho ulterior? Como aplicar hoje a herança dos Papas João XXIII e Paulo VI? Não tenho um programa abrangente. Posso indicar apenas a alguns poucos pontos de vista. Antes de tudo, o Concílio acolheu, de modo crítico-construtivo, demandas importantes da modernidade. Hoje, meio século depois, da era moderna passamos à pós-moderna. Muitas questões antigas são propostas de um modo novo e, inclusive, muitos ideais do iluminismo são postos hoje em discussão. A fé no progresso, que havia então, bem como a confiança na razão foram abaladas. Isso não significa que o Concílio não seja mais atual. A Igreja deve levar a sério as demandas legítimas da era moderna. Deve defender a fé, quer contra o pluralismo e o relativismo pós-modernos, quer contra as tendências fundamentalistas que fogem à razão.

O segundo desafio na era pós-moderna não é apenas o que vem do nosso mundo ocidental secularizado e relativista, mas também do hemisfério sul, ou seja, é o desafio da pobreza da grande maioria dos homens. O Papa Francisco, com sua opção por uma Igreja pobre e para os pobres, recordou-o. E o fez em continuidade com o Vaticano II que, na Lumen gentium, numa seção frequentemente esquecida, fala do seguimento de Jesus, que por nós se tornou pobre, e da pobreza e simplicidade apostólica da Igreja. Nesse sentido, o Papa Francisco, desde o primeiro dia do seu pontificado, deu a sua interpretação, diria eu profética, do Concílio, pondo em marcha uma nova fase da sua recepção. Ele mudou a agenda: à frente estão agora os problemas do hemisfério sul. Isso leva a um terceiro ponto: devemos tomar consciência de que a situação da Igreja mudou desde os tempos do Concílio. No início do século passado, só um quarto dos católicos achava-se fora da Europa. Hoje, um quarto vive na Europa e mais de dois terços dos católicos vivem no hemisfério sul, onde a Igreja cresce. No nosso mundo globalizado, a Igreja tornou-se Igreja mundial e universal, de um modo novo. O problema da unidade e da multiplicidade coloca-se, então, de uma maneira verdadeiramente nova.

O Concílio concebeu a Igreja como communio, ou seja, participação na comunhão trinitária e como unidade na multiplicidade. Certamente, a unidade no ministério petrino é um bem alto e um verdadeiro dom do Senhor à sua Igreja. Uma recaída na mentalidade de Igreja nacional seria, no nosso mundo globalizado, absolutamente incapaz de indicar um caminho para o futuro. Aceitar um centro, contudo, não significa aceitar um centralismo exagerado. Já em 1963, Joseph Ratzinger chamou a atenção para o fato de que a unidade no ministério petrino não deve ser necessariamente entendida como unidade administrativa, mas deixa espaço a uma multiplicidade de formas administrativas, disciplinares e litúrgicas. João Paulo II, na encíclica Ut unum sint (1995), solicitou se meditasse sobre novas formas de exercício do primado. Bento XVI retomou essa frase pelo menos duas vezes. Foi, portanto, muito significativo, que o Papa Francisco tenha feito referência ao Bispo de Roma, que preside na caridade, famosa afirmação de Inácio de Antioquia. Ela é de importância fundamental não só para o prosseguimento do diálogo ecumênico, sobretudo com as Igrejas ortodoxas, mas também para a própria Igreja Católica.

Quarto ponto de vista. O problema da unidade na multiplicidade agudiza-se na questão da liberdade de cada ser humano e de cada cristão. Hoje, fala-se muito da individualização da nossa sociedade. O problema é colocado também na Igreja. Problemas que se colocam para muitos cristãos e pastores, sobretudo em questões éticas.

O último ponto é o mais importante: a questão de Deus. O Concílio já enumerou o ateísmo, em suas várias modulações, entre as questões sérias da época atual. Tal situação, daquele período em diante, acentuou-se em forma dramática. O problema de hoje é que Deus, para muitos, não seja mais um problema, ou ainda, parece que não seja mais um problema, que a Sua existência não interesse mais. O problema é a indiferença.

Em tal situação, não nos podemos preocupar apenas com os efeitos sociais, culturais e políticos da fé, considerando a fé em Deus como premissa óbvia. Não basta sequer que nos preocupemos com questões de reforma, internas à nossa Igreja: elas interessam apenas para os de dentro. As pessoas lá fora, no “átrio dos gentios”, têm outras perguntas: de onde venho e para onde vou? Por que e para que eu existo? Por que existe o mal, por que o sofrimento no mundo? Por que eu tenho de sofrer? Como posso encontrar felicidade, onde encontrar alguém que me seja próximo, que me entenda, que me conforte, que me dê um pouco de esperança?

Não devemos falar de uma transcendência vaga, mas devemos falar concretamente do Deus que, em Jesus Cristo, revelou-se como Deus conosco e para nós, do Deus infinitamente misericordioso, que nos espera, que nos dá uma nova chance em cada situação e a quem nós, na oração, podemos dizer: “Abbá, Pai”. Devemos falar da misericórdia de Deus, daquela misericórdia que é – como disse o Papa Francisco – o nome do nosso Deus.

O caminho iniciado com o Concílio não acabou. A rica herança, que os dois Papas João XXIII e Paulo VI nos deixaram, não foi esgotada ainda. Devemos percorrer esse caminho, com paciência, mas também com determinação e coragem, apesar de tudo, com hilaritas, alegria interior. Como disse o profeta: “A alegria do Senhor é a nossa força” (cfr. Neemias 8, 10). O Concílio suscitou em nós a alegria por Deus, pela fé, pela Igreja. É preciso, antes de mais, acendê-la de novo em nós, a fim de entusiasmar também os outros. A alegria é contagiosa. É certo que cada um de nós representa tão-somente uma pequena luz. Também o movimento pré-conciliar de renovação começou com indivíduos isolados e pequenos grupos. Na renovação pós-conciliar, não será diferente. Todavia, se não deixarmos que se perca a alegria, então, um dia, ela poderá chegar aos outros. Ela pode contribuir a fazer com que a Igreja, num mundo que muda velozmente e é profundamente inseguro, se torne, de um modo novo, bússola e sinal de encorajamento.

Por Cardeal Walter Kasper

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