
Interpretação e recepção do Vaticano II. A alegria de Deus suscitou-se em nós: não deixemos que se perca.
Era a época da guerra
fria. Um ano antes do início do Concílio, tinha-se construído o Muro de
Berlim e, durante o período da primeira sessão, o mundo se viu à beira
do abismo da guerra atômica por causa da crise de Cuba. Hoje, cinquenta
anos depois, vivemos num mundo globalizado, completamente diferente e em
rápida transformação, com novas questões e novos desafios. A fé
otimista no progresso e o espírito de se encaminhar em direção a novos
horizontes esfumaram-se há muito tempo. Para a maior parte dos
católicos, os desenvolvimentos postos em marcha pelo Concílio fazem
parte da vida cotidiana da Igreja. Todavia, o que experimentam não é o
grande avanço, não é a primavera da Igreja, que então esperávamos, mas
sim, na verdade, uma Igreja com aspecto de inverno, que mostra claros
sinais de crise.
Para quem conhece a história dos vinte
concílios reconhecidos como ecumênicos, isso não constituirá uma
surpresa. Os tempos pós-conciliares foram quase sempre turbulentos. O
Vaticano II, porém, representa um caso particular. Diferentemente dos
concílios precedentes, não foi convocado para excluir doutrinas
heréticas nem para recompor um cisma, não proclamou dogma formal algum,
nem sequer assumiu deliberações disciplinares formais. João XXIII tinha
uma perspectiva mais ampla. Viu que se perfilava uma nova época, a cujo
encontro foi com otimismo, na inamovível confiança em Deus. Falou de um
objetivo pastoral do Concílio, tendo em vista uma posta ao dia
(“aggiornamento”), um “tornar-se hoje” da Igreja. Não se queria uma
adaptação banal ao espírito dos tempos, mas o apelo a fazer com que a fé
transmitida no hoje falasse.
A grande maioria dos Padres conciliares
captou a ideia. Quis acolher as demandas dos movimentos de renovação
bíblica, litúrgica, patrística, pastoral e ecumênica, surgidos entre as
duas guerras mundiais, começar uma nova página da história com o
Judaísmo, carregada de agravos, e entrar em diálogo com a cultura
moderna. Foi o projeto de uma modernização, que não queria nem podia ser
modernismo.
Uma minoria influente opôs obstinada
resistência a essa tentativa da maioria. O sucessor de João XXIII, Paulo
VI, estava fundamentalmente na parte da maioria, mas tratou de engajar a
minoria e, na linha da antiga tradição conciliar, de obter uma
aprovação, o mais possível unânime, dos documentos conciliares, que
foram dezesseis no total. Conseguiu, mas pagou-se um preço. Em muitos
pontos, tiveram-se de achar fórmulas de compromisso, nas quais, amiúde,
as posições da maioria figuram imediatamente ao lado daquelas da
minoria, pensadas para delimitá-las.
Assim, os textos conciliares têm em si um
enorme potencial de conflito, abrem a porta a uma recepção seletiva
numa ou noutra direção. Que direção indica a bússola do Concílio e para
onde conduz o caminho da Igreja Católica no ainda jovem século XXI?
Permanece na confiança crente de João XXIII ou faz o caminho contrário,
em direção a estéreis atitudes de defesa?
Podem-se distinguir três fases da
recepção conciliar até os nossos dias. Em primeiro lugar, a fase da
recepção entusiástica. Karl Rahner, logo depois de ter voltado do
Concílio, numa conferência em Munique, falou do “início do início”. Mas
Rahner permaneceu cautelosamente cético no que dizia respeito ao futuro.
Outros foram além e quiseram deixar de lado o que consideraram
elementos da tradição arrastados pelo Concílio como acessórios, fruto de
compromisso, e, como Hans Küng, fazendo um salto de quase dois mil anos
de história da Igreja, interpretaram a doutrina da Igreja de um modo
todo novo, partindo da Sagrada Escritura.
A reação não se fez esperar por muito
tempo. Veio não só do Arcebispo Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal
São Pio X, por ele fundada, mas também de teólogos que, durante o
Concílio, tinham-se posicionado entre os progressistas (Jacques
Maritain, Louis Bouyer, Henri de Lubac). Diferentemente de Lefebvre, não
criticaram o Concílio em si, mas a sua recepção. De fato, nas primeiras
duas décadas depois do Concílio, teve-se um êxodo de muitos sacerdotes e
religiosos, em muitos âmbitos, conheceu-se um decaimento da prática
eclesiástica ao lado de movimentos de protesto de sacerdotes, religiosos
e leigos. O Papa Paulo VI falou de “fumaça de Satanás”, entrada por
alguma fresta no templo de Deus.
Ainda hoje, alguns críticos consideram o
Vaticano II, no contexto da história da Igreja, como uma desgraça e como
a maior calamidade dos tempos recentes. Representa, porém, um
curto-circuito achar que tudo o que aconteceu depois do Concílio tenha
acontecido por causa do Concílio. Os críticos ignoram tendências bem
consolidadas, já em ato antes do Concílio, que conheceram notável
aceleração nos distúrbios sociais relacionados com o protesto dos jovens
e dos estudantes em 1968. Depois de 1968, as tendências emancipadoras
tiveram efeito inclusive no âmbito eclesiástico. Durante o Concílio, os
progressistas foram os verdadeiros conservadores, que queriam renovar a
tradição antiga. Depois, tomaram a palavra progressistas de um novo
tipo, que não se orientavam tanto no sentido da tradição antiga, mas no
dos “sinais dos tempos”, querendo interpretar o Evangelho com base na
situação social transformada.
O Sínodo Extraordinário dos Bispos de
1985, vinte anos depois do fim do Concílio, iniciou a terceira fase da
recepção. O Sínodo teve a missão de fazer um balanço. Consciente da
crise, não quis unir-se, porém, ao coro dos lamentos. Falou de uma
situação ambivalente, em que, além de aspectos negativos, havia também
frutos bons: a renovação litúrgica, que levara a uma ênfase maior na
Palavra de Deus e a uma participação maior de toda a comunidade
celebrante, a participação e a cooperação reforçada dos leigos na vida
da Igreja, as aproximações ecumênicas, as aberturas ao mundo moderno e à
sua cultura, entre outros muitos.
Fundamentalmente, o Sínodo sublinhou que a
Igreja, em todos os concílios, é sempre a mesma e que o último Concílio
deve ser interpretado em relação com todos os outros. Com essa regra
hermenêutica, o Sínodo tornou-se um ponto de cristalização da terceira
fase da recepção, a fase magistral. O primeiro passo oficial da recepção
foi a reforma litúrgica: foi, sobretudo, a introdução do novo Missal,
entrado em vigor no primeiro Domingo do Advento de 1970. Essa reforma,
acolhida com gratidão por ampla maioria, encontrou também críticas, em
parte por razões teológicas e, em parte também, porque alguns tinham
nostalgia da sacralidade e da estética do rito em uso até então.
Os documentos conciliares não
permaneceram letra morta. Deixaram sua marca na vida das dioceses,
paróquias e comunidades religiosas, através da renovação da liturgia, de
uma espiritualidade caracterizada por um mais forte aspecto bíblico e
pela participação dos leigos, estimulando ainda o diálogo ecumênico e
inter-religioso. O Concílio foi acolhido positivamente, em particular,
pelos novos movimentos espirituais surgidos nos anos setenta, que
trouxeram à luz, de um modo novo, a multiplicidade dos carismas e a
vocação universal à santidade.
Nem sequer a recepção oficial permaneceu
estática. Em parte, ultrapassou o Concílio, no âmbito das reformas
litúrgicas, em que o texto conciliar se atinha ainda ao latim como
língua litúrgica normal e não se falava de celebração orientada em
direção ao povo. O mesmo vale para as indicações sociais e éticas do
Papa João Paulo II para levar a efeito a liberdade religiosa, mediante a
rescisão de concordatas que colidiam com ela e, enfim, para a
“política” dos direitos humanos, com a qual João Paulo II forneceu uma
contribuição essencial para a derrocada das ditaduras comunistas da
Europa Oriental. Vale ainda apontar a sua encíclica sobre o ecumenismo, Ut unum sint
(1995), que aprofundou os enunciados ecumênicos do Concílio, levando-os
adiante com energia. Tudo isso transformou positivamente, sob muitos
aspectos, o rosto da Igreja tanto interna quanto externamente. O
ecumenismo, outro tema importante, deu muitos frutos bons, mais do que
se poderia esperar nos tempos do Concílio.
Uma Igreja que se apoia nas correntes em
voga da sociedade torna-se, em última análise, supérflua. Não se torna
interessante se se adornar com plumas que não são suas, mas se fizer
valer a própria causa de modo credível e convincente, aparecendo como
anteparo frente à opinião pública dominante. Cinquenta anos depois de
sua abertura, há ainda ocasião para ocupar-se, de maneira aprofundada,
dos textos do Concílio, de modo a extrair-lhes os tesouros, ainda não
exauridos, que ali se encontram. Naturalmente, não se pode mitigar o
Concílio nem reduzi-lo a um par de frases de efeito. Tampouco se pode
usá-lo como pedreira de que tomar material para teses pontuais que se
queiram provar. É necessária uma hermenêutica conciliar, ou seja, uma
interpretação meditada.
Ponto de partida hão de ser os textos
conciliares, cuja interpretação deve ser feita segundo as regras e os
critérios universalmente reconhecidos para a interpretação de concílios.
É preciso extrair o sentido de cada afirmação, com cautela, da história
da redação, amiúde complexa; depois, é preciso colocá-la no conjunto,
articulado e rico de tensões, de todas as afirmações conciliares; é
preciso, ainda, entendê-la no conjunto de toda a Tradição e do seu
desenvolvimento histórico, como também da recepção ocorrida no meio
tempo. Enfim, cada afirmação isolada há de se interpretar, no quadro da
hierarquia das verdades, partindo-se do seu centro cristológico. A
recepção, sob a direção e a moderação do Magistério, é questão de todo o
povo de Deus.
Importante indicativa ulterior foi dada
pelo Papa Bento XVI, num discurso aos cardeais e colaboradores da Cúria
romana, pronunciado no dia 22 de dezembro de 2005, por ocasião do
quadragésimo aniversário de encerramento do Concílio. Ele assim
introduziu a fase mais recente do debate sobre a interpretação do
Concílio. Esclareceu que o consenso não deve ser apenas sincrônico
(dizendo respeito à Igreja atual), mas também diacrônico (dizendo
respeito à Igreja de todas as épocas). Contrapôs duas hermenêuticas: a
da descontinuidade e da ruptura, que rejeitou, e a da “reforma, da
renovação”. As palavras do Papa foram interpretadas, frequentemente, de
forma unilateral, deixando-se de considerar que ele não contrapôs, como
muitos o afirmam, a hermenêutica da descontinuidade à hermenêutica da
continuidade. O Papa falou de uma hermenêutica da reforma e da
“renovação na continuidade” da Igreja.
Reforma é, no conjunto da Tradição
medieval, um termo fundamental e um desafio sempre reproposto. Reforma
não significa apenas a necessária adaptação prática de parágrafos
isolados a situações novas. Quem fala de reforma, pressupõe que
subsistam deficiências e disfunções a tornarem necessário o remontar-se a
tradições mais antigas, esquecidas, em particular ao início apostólico,
renovando-o criativamente.
O discurso do Papa sobre a reforma e a
renovação na continuidade, reflete uma concepção viva da Tradição que,
se às argumentações fundamentais se seguirem consequências práticas,
poderia reacender o fogo do Concílio, ou seja, poderia, na continuidade,
trazer de novo o impulso inovador do Concílio.
Perguntemos: Como pode aparecer tal
renovação e para onde pode dirigir-se o seu caminho ulterior? Como
aplicar hoje a herança dos Papas João XXIII e Paulo VI? Não tenho um
programa abrangente. Posso indicar apenas a alguns poucos pontos de
vista. Antes de tudo, o Concílio acolheu, de modo crítico-construtivo,
demandas importantes da modernidade. Hoje, meio século depois, da era
moderna passamos à pós-moderna. Muitas questões antigas são propostas de
um modo novo e, inclusive, muitos ideais do iluminismo são postos hoje
em discussão. A fé no progresso, que havia então, bem como a confiança
na razão foram abaladas. Isso não significa que o Concílio não seja mais
atual. A Igreja deve levar a sério as demandas legítimas da era
moderna. Deve defender a fé, quer contra o pluralismo e o relativismo
pós-modernos, quer contra as tendências fundamentalistas que fogem à
razão.
O segundo desafio na era pós-moderna não é
apenas o que vem do nosso mundo ocidental secularizado e relativista,
mas também do hemisfério sul, ou seja, é o desafio da pobreza da grande
maioria dos homens. O Papa Francisco, com sua opção por uma Igreja pobre
e para os pobres, recordou-o. E o fez em continuidade com o Vaticano II
que, na Lumen gentium, numa seção frequentemente esquecida, fala
do seguimento de Jesus, que por nós se tornou pobre, e da pobreza e
simplicidade apostólica da Igreja. Nesse sentido, o Papa Francisco,
desde o primeiro dia do seu pontificado, deu a sua interpretação, diria
eu profética, do Concílio, pondo em marcha uma nova fase da sua
recepção. Ele mudou a agenda: à frente estão agora os problemas do
hemisfério sul. Isso leva a um terceiro ponto: devemos tomar consciência
de que a situação da Igreja mudou desde os tempos do Concílio. No
início do século passado, só um quarto dos católicos achava-se fora da
Europa. Hoje, um quarto vive na Europa e mais de dois terços dos
católicos vivem no hemisfério sul, onde a Igreja cresce. No nosso mundo
globalizado, a Igreja tornou-se Igreja mundial e universal, de um modo
novo. O problema da unidade e da multiplicidade coloca-se, então, de uma
maneira verdadeiramente nova.
O Concílio concebeu a Igreja como communio,
ou seja, participação na comunhão trinitária e como unidade na
multiplicidade. Certamente, a unidade no ministério petrino é um bem
alto e um verdadeiro dom do Senhor à sua Igreja. Uma recaída na
mentalidade de Igreja nacional seria, no nosso mundo globalizado,
absolutamente incapaz de indicar um caminho para o futuro. Aceitar um
centro, contudo, não significa aceitar um centralismo exagerado. Já em
1963, Joseph Ratzinger chamou a atenção para o fato de que a unidade no
ministério petrino não deve ser necessariamente entendida como unidade
administrativa, mas deixa espaço a uma multiplicidade de formas
administrativas, disciplinares e litúrgicas. João Paulo II, na encíclica
Ut unum sint (1995), solicitou se meditasse sobre novas formas
de exercício do primado. Bento XVI retomou essa frase pelo menos duas
vezes. Foi, portanto, muito significativo, que o Papa Francisco tenha
feito referência ao Bispo de Roma, que preside na caridade, famosa
afirmação de Inácio de Antioquia. Ela é de importância fundamental não
só para o prosseguimento do diálogo ecumênico, sobretudo com as Igrejas
ortodoxas, mas também para a própria Igreja Católica.
Quarto ponto de vista. O problema da
unidade na multiplicidade agudiza-se na questão da liberdade de cada ser
humano e de cada cristão. Hoje, fala-se muito da individualização da
nossa sociedade. O problema é colocado também na Igreja. Problemas que
se colocam para muitos cristãos e pastores, sobretudo em questões
éticas.
O último ponto é o mais importante: a
questão de Deus. O Concílio já enumerou o ateísmo, em suas várias
modulações, entre as questões sérias da época atual. Tal situação,
daquele período em diante, acentuou-se em forma dramática. O problema de
hoje é que Deus, para muitos, não seja mais um problema, ou ainda,
parece que não seja mais um problema, que a Sua existência não interesse
mais. O problema é a indiferença.
Em tal situação, não nos podemos
preocupar apenas com os efeitos sociais, culturais e políticos da fé,
considerando a fé em Deus como premissa óbvia. Não basta sequer que nos
preocupemos com questões de reforma, internas à nossa Igreja: elas
interessam apenas para os de dentro. As pessoas lá fora, no
“átrio dos gentios”, têm outras perguntas: de onde venho e para onde
vou? Por que e para que eu existo? Por que existe o mal, por que o
sofrimento no mundo? Por que eu tenho de sofrer? Como posso encontrar
felicidade, onde encontrar alguém que me seja próximo, que me entenda,
que me conforte, que me dê um pouco de esperança?
Não devemos falar de uma transcendência
vaga, mas devemos falar concretamente do Deus que, em Jesus Cristo,
revelou-se como Deus conosco e para nós, do Deus infinitamente
misericordioso, que nos espera, que nos dá uma nova chance em cada
situação e a quem nós, na oração, podemos dizer: “Abbá, Pai”. Devemos
falar da misericórdia de Deus, daquela misericórdia que é – como disse o
Papa Francisco – o nome do nosso Deus.
O caminho iniciado com o Concílio não
acabou. A rica herança, que os dois Papas João XXIII e Paulo VI nos
deixaram, não foi esgotada ainda. Devemos percorrer esse caminho, com
paciência, mas também com determinação e coragem, apesar de tudo, com hilaritas, alegria interior. Como disse o profeta: “A alegria do Senhor é a nossa força” (cfr. Neemias
8, 10). O Concílio suscitou em nós a alegria por Deus, pela fé, pela
Igreja. É preciso, antes de mais, acendê-la de novo em nós, a fim de
entusiasmar também os outros. A alegria é contagiosa. É certo que cada
um de nós representa tão-somente uma pequena luz. Também o movimento
pré-conciliar de renovação começou com indivíduos isolados e pequenos
grupos. Na renovação pós-conciliar, não será diferente. Todavia, se não
deixarmos que se perca a alegria, então, um dia, ela poderá chegar aos
outros. Ela pode contribuir a fazer com que a Igreja, num mundo que muda
velozmente e é profundamente inseguro, se torne, de um modo novo,
bússola e sinal de encorajamento.
Por Cardeal Walter Kasper
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